We're Family #42



Mercúrio 



     Mercúrio acordara com o primeiro raio de Sol da manhã a bater na sua janela. Não se deu conta de Mondy até que o cheiro dela e um calor reconfortante se fezer sentir. Ela dormia pacificamente, com a mão dela apoiada no seu peito, ainda dorido. A expressão dela fez Mercúrio sorrir. Como nos velhos tempos - pensou. 
     Não se tinha apercebido de que dormira imenso. Já deveria estar menos dorido e com menos dores, mas não era o caso. 
- Podias ter sido mais meiguinha, Vénus - pensou baixinho.
     Mondy mexeu-se um pouco.
     Mercúrio tentou não acordá-la ao sair da cama, porém, esqueceu-se de que ela tinha um sono leve e acordava com qualquer coisa.
- Onde vais? - A sua voz estava baixinha e um pouco rouca.
- Preparar o pequeno-almoço e procurar a coragem para ir falar com toda a gente - soltou um sorriso parvo. 
     Mondy sorriu-lhe e deixou-se ficar na cama. Ele caminhou cuidadosamente para fora do quarto e verificou que ninguém estava acordado. Não teria piada já estarem todos a pé, com o pequeno-almoço tomado. E então lembrou-se que não sabia cozinhar nada. Ele apenas sabia colocar os cereais numa taça e mergulhá-los no leite. Ou barrar doce ou manteiga numa torrada. Nem bom café sabia fazer! Mondy sempre ralhava com ele por fazer o café demasiado amargo ou demasiado doce e por isso deixou de tentar.
- Parece que é altura de aprender - suspirou enquanto olhava para o armário da cozinha cheia do ingredientes. - Se o Sol consegue, eu consigo... 
Os seus olhos pousaram nos vários doces que Mondy tinha. Havia doce de morango, cenoura, laranja, mirtilo, abóbora... E então, Mercúrio decidiu o que seria o pequeno-almoço: torradas com doce e mais doce, iria fazer sumo, iria tentar fazer um bom café, iria abrir o pacote de waffles que tinha visto no armário ao lado, iria cortar fruta para comer com os waffles, e iria fazer o chá preferido de Mondy. Sim. 
     Mercúrio procurou o pão para fazer as torradas, porém, não encontrou nenhum. Ir sair agora para ir comprar iria ocupar tanto tempo, mas era a única solução. Subiu as escadas rapidamente mas sem barulho algum. Procurou na gaveta da cómoda de Plutão por uma t-shirt e vestiu-a rapidamente para Mondy não se dar conta dele no quarto. Pegou dinheiro e nas chaves do carro que estavam em cima do frigorífico e foi ao mercado. Mercúrio apenas desejou ainda saber o caminho para o pequeno mercado que ele e Mondy, de vez em quando, iam, antes e depois da Mel nascer. 
     Mel... O sorriso da sua filha passou-lhe à frente dos seus olhos e de repente, sentiu uma culpa enorme no seu coração. Ele sabia que Mel não iria estar contente por vê-lo perder o controle. Porém, ela iria confortá-lo de alguma forma. Se calhar dizer-lhe: "Abusas-te um pouco, pai. Mas eu percebo-te. Percebo-te mesmo".
     A doce voz dela voou com o soprar do vento e as palavras que Mercúrio imaginou na sua mente soaram verdadeiras e ditas pela sua menina. Mercúrio não conseguiu evitar e chamou por ela, na esperança de poder presenciar um fragmento dela, do seu espírito, da sua alma. Mas nada se fez ouvir a não ser o soprar doce do vento. Ele passou a mão pelo cabelo, ligou o carro e começou a conduzir antes as memórias o atacassem.





     Mercúrio colocou na sua cabeça que quando chegasse ao tal mercado, iria sair de lá num piscar de olhos. Não queria suportar as memórias que aquele lugar iria trazer. Porém, ficou lá mais do que devia. Em cada corredor, Mercúrio conseguia ver Mel a correr e a sorrir. Ela costumava pegar em cada produto e perguntava se precisávamos e ele detestava dizer-lhe que não porque depois ela ficava rabugenta. Tal como ele fica quando alguém lhe recusa algo. Mercúrio soltou um sorriso e não se importou das pessoas que o olhavam de alto a baixo. 
     Ele comprou fruta, mais um frasco de doce de morango - o que havia em casa estava a acabar - um bolo de iogurte e pão de forma. 
     Chegou a casa num instante e começou logo a tratar do pequeno-almoço, mas primeiro fez questão de tirar aquela t-shirt. Mercúrio detestava t-shirts, ou roupa para o tronco em geral. Achava que elas apertavam demasiado e sufocavam.
     Depois, tirou o pacote de waffles do armário e colocou-os num prato. Abriu o pacote do pão e ligou a tostadeira. Procurou o café e mergulhou os grãos em água quente e deixou o desafio do açúcar para o fim. 
     Mercúrio concentrou-se no tempo em que as torradas ficavam na tostadeira, para ter a certeza que não se queimavam, alternando o olhar entre a máquina e a fruta que estava a cortar. Completamente distraído, ele nem ouviu Mondy descer as escadas a caminho da cozinha. E só deu conta dela quando o braço dela envolveu-o. 
- Estou a sair-me bem, chefe? 
- Otimamente.
     Mondy ficou de bicos de pés e Mercúrio baixou-se mais um pouco para ela poder beijar a sua bochecha, porém, ele virou a cara e os lábios deles tocaram-se. Macios e suaves. 
     Mondy ficou surpreendida e corou. Ele sorriu, nada envergonhado e muito contente por ela não se ter chateado com ele. Passado um bocado, ela ajudou-o com o resto do pequeno-almoço e acabaram num instante. 
- Queres que te ensine a colocar bem o açúcar no café? Sabes eu...
- Não. Eu faço sozinho - Mercúrio encheu o peito de orgulho e lá foi colocar o açúcar no café. Apesar de ser a coisa mais simples do mundo, tinha de ser ele a fazer.
     Quando ia deixar cair os pequenos grãos no café, Plutão gritou: 
- Bom dia! -
     E então ele deixou cair a quantidade de açúcar que parecia ser demasiada. Mercúrio olhou-o com má cara.
- O que foi? - perguntou confuso. Plutão olhou à volta e viu aquele pequeno-almoço. - Eh lá, isto é para mim? - Sentou-se na mesa a comer uma waffle e a encher o copo com sumo. - Isto está delicioso!
     Plutão falava de boca cheia e Mondy soltava gargalhadas da cara de Mercúrio. Mercúrio suspirou. Pousou o café na mesa e esperou que ele estivesse em condições.
- Hey! Aquela é a minha t-shirt verde? - Plutão fez uma cara zangada por ver a sua t-shirt completamente abandonada no chão frio da cozinha.
- Pois. Desculpa lá. - Mercúrio encolheu os ombros.

     Quando estavam todos na mesa, Mercúrio detestou o olhar do Sol sobre ele. Apercebeu-se da sua asneira, da grossa, e a culpa que nunca o deixara, intensificou-se. Como não se sentisse mal o suficiente, quando bebeu o café feito por si, só lhe apeteceu cuspi-lo.
     Farto do olhar feroz de Sol, ele decidiu adiantar a conversa prevista para mais tarde.
- Ouçam... - todos olharam para ele, atentos e expectantes das suas desculpas. - Eu queria pedir desculpas por ontem. Eu reagi muito mal. - Mondy agarrou na sua mão a dar-lhe força. Mercúrio sentia-se nervoso. - E queria pedir desculpa por vos ter atirado para longe. - Mercúrio dirigia-se a Sol e Plutão.
- Eu percebo o porquê de tudo, mas ficas avisado que para a próxima congelo essa tua chama - Plutão deu-lhe um toque no ombro e sorriu-lhe.
     Foi a vez de Sol falar e sinceramente, Mercúrio já previa o sermão.
- Eu sei de onde veio essa tua raiva. Se Tema tivesse feito o mesmo à Luna, bem, eu reagiria bem pior. Pensava que tinhas mais auto-controle sobre ti próprio. Mas eu não vou ficar mal contigo por causa disto. - Sol soltou-lhe um sorriso torto e para Mercúrio bastou.
     Mercúrio reparou em Luna, que nada dissera durante o pequeno-almoço todo. Será que ela era a tal que iria dar-lhe o sermão? Não. Não achava que fosse. Seria Vénus. Isso sim. Mas porque raio estaria Luna tão quieta?
- Luna, passa-se algo?
- Falamos depois de comermos, pode ser?
- Sim, por mim tudo bem.
     A curiosidade que Mercúrio criara sobre o que Luna poderia dizer-lhe estava a dar cabo dele aos poucos. No entanto, algo lhe dizia para se acalmar. Uma vozinha, dentro de si, reconfortava-o e relaxava-o. Não sabia de onde essa voz viria até que ele realmente a ouviu. Era Mondy através da Ligação deles e de súbito, o seu interior nunca esteve tão bem.




Tema 



     Os seus olhos despertaram e uma sensação desconhecida apoderava-se do seu corpo, da sua alma. Tema nunca sentira algo assim. A sensação era refrescante, grandiosa e preenchia qualquer vazio dentro dele. Tema sentia-se completo e ao olhar para o lado, percebeu tudo: Vénus, a sua Tal, criara Ligação com ele e agora ambos estavam unidos num só, para, o que ele desejava, sempre. 
     Os raios de luz da manhã ainda se faziam sentir pela grande janela do seu quarto e iluminava cada canto do espaço. Ele deixou-se estar na cama, observando a sua Tal envolvida nos lençóis de seda da cama que a superiorizavam em relação a tudo, tornando-a numa deusa. Parecia impossível como ele era merecedor de poder estar ao lado quanto muito mais amá-la. E ele amava-a. Mais do que ele alguma vez imaginaria. Tema e envolveu-a nos seus braços, aquecendo-a com o calor que ela criara nele. 
    Só o facto de estar assim com alguém o surpreendia. Ele nunca pensara que isto era possível, nem mesmo nos seus sonhos mais imaginários. Sempre pensou que o amor não o iria encontrar e até se obrigou a crer que era uma fraqueza. No entanto, desde que a viu... Desde que a viu, qualquer pensamento negativo acerca do amor se desvaneceu num piscar de olhos. Algo tão bom de certo que tem a sua fraqueza, mas a sua força é bem maior que qualquer mal. Era nisso que Tema realmente acreditava. Era em Vénus que Tema realmente acreditava. 
- Sabes, pensas muito enquanto estou a dormir. 
     Tema surpreendeu-se com a voz dela, mas sorriu-lhe. 
- A dormir, ou a fingir que dormes? 
- Hum, os dois. 
     Vénus virou-se para ele e tapou o corpo com o lençol. Algo a perturbava. Tema não conseguia perceber o quê.
- Está tudo bem? 
     Vénus corou ligeiramente e apoiou o rosto na mão direita, colocando o cabelo para o mesmo lado num gesto de cabeça. Ia abrir a boca para falar, mas Tema descobriu o significado daquilo tudo e começou primeiro, e esboçou um sorriso convencido. 
- Estás preocupada com o sexo, Vénus?
      Ela sorriu, baixando o olhar, sentido-se uma parva. Tema tentou fazer com ela o voltasse a encarar.
- Não é bem isso - respondeu ela. - Mas aqui um aparte, foi muito bom - disse baixinho, a sorrir.
      Foi a vez de Tema baixar o olhar ao lembrar-se do momento.
- Então, o que se passa realmente? 
      Vénus fitou-o. Passados alguns momentos em silêncio, ela falou:
- A nossa Ligação não te assusta um pouco? Quero dizer, durante tanto tempo eu vivi sozinha, sendo a minha própria mulher, com os meus próprios objectivos. E agora estamos os dois juntos, unidos para a eternidade por este fio dourado. Não consigo deixar de pensar que vou estragar isto tudo. Que não vou conseguir fazer isto resultar.  
- Não tens que te preocupar. - Tema sorriu-lhe e pegou nas mãos dela, que estavam tensas, e entrelaçou os seus dedos com os dedos dela. Antes de dar-lhe uma resposta concreta, ele tentou colocar um tom sério e sincero na sua voz. - Porque se alguém estragar isto vou ser eu. E vou tentar o meu máximo para isso não acontecer. Não quero que este fio dourado se quebre. Não te quero perder. Eu esperei por ti sem me aperceber. Agora que te tenho, Vénus... não pretendo largar-te.
     Como um íman, eles aproximaram-se. O beijo entre eles foi duradouro, apaixonante. Tema pegou no lençol colocando-o por cima deles, Vénus envolveu o pescoço dele com os braços e os dois aproveitaram aquele momento como se fosse o último.




Luna



     Eu sabia que Mercúrio iria ficar curioso com o que teria para lhe dizer, mas não era nada de mais. Iria dizer-lhe que percebi tudo o que se passou ontem, que o apoio, mas que não quero que se volte a repetir. E também iria falar com ele sobre o meu sonho. Acho que ele deve saber mesmo tendo dito ao Sol que era para manter isto em segredo. Bem, vamos manter isto em segredo, entre os três. 
     Depois de Mercúrio ajudar a avó, que estava super bem disposta e super colada a ele, fomos os dois conversar para fora de casa, mantendo a certeza de que ninguém nos iria ouvir, como a avó, ou o meu pai. 
     Começámos a ir pelo caminho em que conheci o Tiago, ou melhor, Tema, e achei irónico irmos falar dele. Às vezes pergunto-me como será que ele conseguiu fingir ser alguém que não é.
- Então Luna. Vais-me contar o que se passa dentro dessa cabecinha ou vesti uma t-shirt para nada?
     Achei que ele estava a ser bruto, mas depois reparei no sorriso dele.
     Como é que eu alguma vez poderia chamar-lhe de avô? Não com esta aparência, obviamente. Ele parecia um homem de 23 anos. Mas eu já estava habituada a tê-lo como minha família, como um irmão mais velho, talvez. Sempre quis ter um irmão mais velho.
- Eu queria dizer-te que, apesar de não ter gostado da tua atitude ontem e de não querer que ela se repita, eu compreendo tudo, mesmo tudo o que sentiste. Ela é a minha avó, a minha única família por 21 anos e acredita, eu queria mesmo destruir Tema com as minhas próprias mãos - fitei-o. Mercúrio não pareceu surpreendido com o que eu disse. - Mas, Mercúrio, aquela não é a justiça que ele tem de sofrer. Ele vai ter tudo o que merece na batalha que eu e o Sol iremos travar contra ele. Essa é a justiça que ele merece e vai ter de certeza.
     Depois das minhas palavras serem ditas, nasceu um grande silêncio entre nós. Fiquei na dúvida se deveria dizer algo ou não. Mas deixei-me levar pelo silêncio.
     Passado longos minutos, Mercúrio falou:
- Sabes, hoje ouvi a Mel. A tua mãe.
     O meu coração parou e logo bateu cinco vezes mais rápido.
- A mãe?
     Não consegui não sorrir. Era impossível. Qualquer coisa sobre ela fazia-me delirar.
- Sim. - Sorriu e fitou-me. - Quando me sentei no carro, antes de ir ao pequeno mercado... - Hesitou e pensou melhor no que iria dizer. - Tenho a certeza que a ouvi falar comigo. Ela disse "Abusas-te um pouco, pai. Mas eu percebo-te. Percebo-te mesmo" e a minha primeira reação foi chamar por ela. - Mercúrio franziu o sobrolho. E de repente, eu não via um homem de apenas 23 anos. A expressão dele não parecia assim tão jovial. - Obviamente que ela não me apareceu, mas era a Mel. Eu sei que era.
- Eu acredito em ti. Sempre. - Agarrei-me ao braço dele. Continuámos a caminhar num destino incerto, num caminho cheio de curvas e obstáculos, mas com a certeza de que iríamos estar sempre juntos, seja qual for o caminho que percorrêssemos. Afinal de contas, somos família. 

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