Underneath #9

     Quando o relógio marcou as nove da noite, Mondy - a senhora que salvou Troy da Escuridão - já tinha falecido. Troy era um intruso naquela sala de estar que não fazia mais nada do que observar a família que perdeu alguém. No entanto, ele não se sentia menos triste. Mondy salvou-lhe de Saeva... Possivelmente salvou-lhe da insanidade, de toda a loucura que nascia dentro dele, da Escuridão que muito facilmente o conseguiu possuir. Ele não sabia porquê mas depois de ter desmaiado, quando o seu corpo despertou de novo, Troy sentia-se diferente.


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     Depois de Sol aparecer, tudo virou branco... Um nevoeiro, uma mancha. E a única coisa que os seus olhos conseguiram ver foi a si mesmo. Um pouco mais velho, mais alto, mais forte e com outro penteado. Mas também mais triste, cansado e sombrio. Apesar de estar diante de um homem que era idêntico a si mesmo, Troy teve dificuldades a acreditar que eram a mesma pessoa. Depois de presenciar os momentos anteriores ele já não sabia se devia acreditar em si mesmo. A sua mente não era de confiança. Por agora, pelo menos. 
     Quando despertou do desmaio, o rosto de Violet e de Melody saltaram-lhe para a vista. Estavam preocupadas e não sabiam o porquê de ele ter desmaiado. Deram-lhe o telemóvel, que devia ter caído do seu bolso, e ele mandou uma mensagem à mãe a explicar que ia jantar na casa das gémeas por causa dum projeto escolar. Minutos mais tarde, outra luz apareceu. Era alaranjada e brilhante e quente. Um homem que não podia ter mais de vinte anos apareceu. O seu cabelo era uma mistura de tons. Troy não conseguiu decidir se era loiro ou ruivo. Vestia somente calças de ganga cinzentas, deixando o tronco nu e os pés descalços. No ombro esquerdo ele tinha uma marca estranha, uma tatuagem de um símbolo que lhe era familiar. Escondido pelo seu cabelo ondulado estava o seu olhar triste e desesperado, repleto de lágrimas. O seu olhar não foi dirigido a ninguém a não ser Mondy. Talvez fosse sua avó também, ele pensou. Ele estava enganado.
     O ar tinha-se tornado mais quente com a chegada de Sol, mais reconfortante e Mondy deu-se conta disso também. Os tremores e os olhos negros tinham desaparecido. Ela ficou calma, talvez adormecida até. Troy desejou que Saeva não estivesse a causar-lhe o mal que causou a ele. E que, por algum milagre, ela estivesse a sonhar com algo bonito e agradável.  
     Mondy chamou-o para se despedir.
- Troy, anda cá, por favor. - Todos os olhos foram postos nele. Troy aproximou-se com hesitação. - Eu adoraria participar na tua jornada mas como vês não vou durar muito mais. O que quero dizer-te é que, neste momento, sei que estás confuso e estes exibicionistas - dirigiu o olhar para Sol e o outro rapaz - não estão a ajudar. Mas eu sei que quando souberes a tua verdade, tudo vai fazer sentido.  
- Realmente, acho que estou a perder a cabeça. 
     Ela sorriu. 
- Tem cuidado, está bem? Corres mais perigo do que tu próprio sabes. O Saeva foi só o começo, Troy. Há mais da tua história do que eu posso te contar. Se te sentires sufocado, respira fundo. As vezes que foram precisas, e lembra-te que na Escuridão vai haver sempre Luz. Só tens de encontrá-la e agarrar-te bem a ela. 
- Eu lembrar-me-ei. Prometo. Obrigado, Mondy. - Troy agarrou bem a mão dela e beijou-a. Ela sorriu-lhe. - Esta é a tua segunda oportunidade. Aproveita-a bem, Tema. 
     Outra vez. Aquele nome. Tema para aqui, Tema para ali. Troy queria perguntar-lhe o porquê de todos o chamarem assim mas não era, de facto, a melhor altura. Ele respirou fundo, sorriu e deu-lhe um beijo na testa. 
- Dorme bem - Troy sussurrou-lhe.  
     As gémeas e os seus pais levaram-no para a cozinha fechando as portas para a sala de estar, deixando Mondy com o rapaz. Custava olhar para as gémeas e os seus pais. Troy não sabia porque ainda continuava naquela casa. Ele só queria deixá-los em paz para terem a sua privacidade. Ele então aproximou-se do casal e despediu-se.
- Não vos quero incomodar mais. Obrigado por me terem deixado ficar e despedir-me dela. - A mãe das gémeas fitou-o incrédula como se Troy tivesse dito uma série de asneiras e virou-lhe o rosto. Sol lançou-lhe olhar rápido e os dois afastaram-se um do outro. Sol levou-o para junto da bancada.
- Precisas que te leve para casa?
- Não, obrigado. Eu consigo ir sozinho...
     Sol pousou a mão no ombro dele
- Já devo estar a pedir muito, mas não queres vir tomar o pequeno-almoço connosco, amanhã?
- Hum... - Troy estava chocado. - Claro... Seria um prazer.
- Desculpa pela Luna, ela está muito abatida. Mas ainda bem que ficaste. Precisavas de ouvir as palavras da Mondy. E eu prometo-te que não estás a perder a cabeça. - Troy assentiu. Sol deu-lhe duas palmadinhas no ombro. - Então até amanhã.
- Até amanhã - Troy murmurou.
     Ele despediu-se das gémeas e foi para casa. Olhou para o telemóvel e o relógio marcava as nove horas. A Lua brilhava por detrás das nuvens e o céu parecia estar a ser engolido limitando a visualização das estrelas. O mar estava parado. A vila continuava na sua normal agitação noturna. Cafés meio cheios, meio vazios. Restaurantes a ficarem repletos de gente. Casais nos parques, pessoas faziam corridas com os seus cães, outros simplesmente vagueavam como ele.
     Finalmente em casa, Troy foi à sala dar um olá aos pais e seguiu para a cozinha. Comeu o prato que lhe ficou guardado do jantar, tomou um duche e meteu-se na cama. Troy tentou adormecer com a luz desligada e com as cortinas abertas para entrar a luz do luar mas não conseguiu. No segundo em que fechou os olhos ele viu o rosto do Saeva a assombrá-lo de novo com umas garras enormes prontas para o arranharem até ele ter o que quer. Com suores frios, ele ligou a luz do candeeiro de cabeceira e o da secretária ficando com duas luzes de presença. Quando se sentiu mais seguro, ele permitiu-se a fechar os olhos e adormeceu.


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     O sol acordou-o bem cedo visto que deixou as cortinas abertas. Troy levantou-se com preguiça e desligou as luzes dos candeeiros. Rastejou para a casa de banho, lavou a cara e os dentes. Vestiu-se e desceu para a cozinha. Era quinta-feira e não havia aulas. Troy começou a comer e já ia na quarta torrada quando se lembrou do combinado com o pai das gémeas. Ele pegou no telemóvel e na carteira e antes de sair, a mãe perguntou:
- Onde vais a estas horas?
- Tomar o pequeno-almoço com os Brown - Troy mostrou um sorriso largo. - Vejo-te ao almoço! Até já, mãe! - E saiu.
     Nem lhe ocorreu que estava a correr até ver a casa das gémeas. Parou, respirou fundo e ajeitou o cabelo. Bateu à porta, um pouco nervoso, e Melody apareceu. Ainda tinha o robe vestido.
- O que pensas que estás a fazer?
- O teu pai convidou-me para o pequeno-almoço, lembras-te?
- Sabes que horas são? Troy, são sete e quarenta da manhã.
      Ele não se tinha apercebido do quão cedo era. Estava tão envergonhado. As suas orelhas ficaram cor de rosa.
- Então... Devo ir ou...
     Melody agarrou-o pela manga da camisola, interrompendo-o e arrastando-o para dentro de casa.
- Entra.
     Ela levou-o para a sala. Estava tão diferente de ontem à noite. A luz que entrava pelas janelas tornava aquele sítio diferente, como se nada tivesse acontecido. Como se a Mondy não tivesse morrido naquele mesmo sofá que ele agora se sentava.
- A Mondy... - começou Troy.
     Melody interrompeu-o outra vez.
- Podes ver televisão enquanto me visto. Não me demoro. - Melody fitou-o. Os seus olhos estavam tão cansados e vermelhos. - Põe-te confortável. - Sorriu e fechou as portas da sala.

     As horas passaram rápido. Quando deu por si estava sentado à mesa com os Brown. Apesar da tragédia que aconteceu, eles estavam bem dispostos. Excetuando a Sra. Brown, Luna. O seu rosto mostrava cansaço e olheiras e a comida estava toda no prato. Sol reparou que Troy a fitava e o seu tom de voz mudou um pouco. Passou de divertido a perturbado. Ele lançou um olhar para as gémeas e levantou-se levando Luna nos seus braços para fora da sala.
     Violet guiou-o até ao quintal. O alpendre todo em madeira estava decorado como se pertencesse a um mundo mágico de fadas e feiticeiros. No meio do quintal encontrava-se uma grande árvore com dois baloiços pendurados. Havia um banco de jardim branco perto da vedação e várias flores junto ao alpendre. Melody apareceu e as duas foram-se sentar nos baloiços e ele no banco. Houve um silêncio estranho. Cada uma das gémeas queria dizer algo mas não eram capaz de proferir uma palavra. Seria ele mesmo um louco? Se calhar isto era uma intervenção. Um intervenção mesmo bem elaborada. Troy massajou os olhos com as palmas das mãos. Estava a ficar paranóico. Estava a sentir-se claustrofóbico dentro da sua própria cabeça. Estava a sufocar. Ele sentiu os braços de alguém à volta. Abriu os olhos que nem se lembrara de ter fechado. A Escuridão já lhe era tão habitual que pensou que o mundo fosse negro. Que tinha perdido. O que a Mondy te disse, Troy? Ele respirou fundo. Isso mesmo. Respira. E ele respirou. Troy virou o rosto e encarou as gémeas com o rosto preocupado.
- Estás bem? - Violet largou-o. - Tu simplesmente caíste.
      Troy mexeu as mãos que tocavam na relva macia e fresca. Ele tinha caído.
- Estou bem. Acho que tive um ataque de pânico - levantou-se.
- De quê? - Melody inquiriu. Ela rapidamente desejou ter ficado calada pelo olhar que a Violet lhe lançou.
- Não sei. Da realidade, acho eu.
- Troy - Sol chamou.
     Os três foram para o alpendre e sentaram à volta da mesa oval de vidro. Sol colocou na mesa um caderno com idade. As páginas estavam gastas e um pouco amareladas. Ele tirou o elástico que prendia as páginas à capa e começou a folheá-lo enquanto lhe mostrava o conteúdo. Ele não estava a perceber o que se estava a passar.
- Desculpe, mas é suposto eu reconhecer isto?
- Folheia-o, por favor.
     Troy pegou no caderno de capa de couro e folheou-o. As páginas eram suaves. O texto escrito a caneta de gel. Desenhos decoravam páginas, às vezes até surgiam pétalas ou flores inteiras coladas. As palavras planeta, alma, representação, poder eram constantes. No canto superior direito existia um símbolo por cada dez folhas, todos eles diferentes. Troy reparou num símbolo. O símbolo tatuado no braço do rapaz de ontem. Ele leu a primeira página e o primeiro nome escrito nela era Mercúrio. Ele continuou a ler e a ler, completamente intrigado e envolvido. Ali dizia que quem tivesse esse símbolo - e pelo que ele percebeu, qualquer um dos outros dez que existiam - era um Planeta. Troy parou. Largou o caderno e fitou os olhos das pessoas à sua frente.
- Mas que jogo estúpido é este?
- Troy acalma-te, vá lá - pediu Violet.
- É a verdade, Troy. Lê mais para a frente.
     Ele não queria ler. Ele queria largar tudo e fugir para um lugar seguro onde nada nem ninguém pudesse destruir a sua realidade. Mas ele pegou no caderno e avançou aquelas páginas todas até que encontrou uma que lhe chamou a atenção. Um símbolo. Uma circunferência pequena envolvida por uma outra maior e preenchida. Um símbolo que ele tinha marcado na sua pele. A sua mão esquerda percorreu o seu peito até parar no exacto local onde tinha a sua marca. Como podia ser? Ele de todas as pessoas. Troy agarrou na t-shirt por onde tinha pausado a mão. A sua cabeça fitava o seu colo. Ele queria soltar tudo o que tinha retido: a raiva, o desespero, o medo. Mas não podia. Tinha de guardar para si e respirar fundo.
- Sou um de vocês - murmurou a encará-los.
- Quase. Não és um Planeta - respondeu Violet.
- Então, sou o quê?
- És uma estrela central. Por outras palavras, és a energia vital duma galáxia. 

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