Underneath #11

     As gémeas perguntaram-lhe se ele queria ficar mais um pouco em casa delas mas Troy tinha de
ficar sozinho por um bocado. A sua cabeça estava a jorrar informação por todos os cantos. Apesar das várias perguntas que ele ansiava ter uma resposta, a que mais o assombrava era se devia contar isto à Catarina. Esconder-lhe isto ia ser difícil porque ela conhece-o demasiado bem. Ela sabe lê-lo como se fosse um livro aberto. Acrescentando que ela pode correr imenso perigo se souber disto e isso só o faz ficar mais tenso. No entanto, Troy também não sabe o que poderá acontecer. O que esta marca e identidade podem trazer. A única coisa que ele realmente sabe é que a Escuridão vem aí para apanhá-lo e não vai preocupar-se em magoar as pessoas que ele ama. Ele tem a Mondy como exemplo, que sacrificou-se por ele sem sequer hesitar.
     O medo apoderou-se dele quando ficou consciente que Catarina se sacrificaria por ele. Sem pensar duas vezes, sem dormir sobre o assunto, sem sequer ouvir um outro lado da história ou uma possível solução. Era esse tanto de amor que ela tinha por ele. Ele só esperava que não fosse esse o seu destino. Troy não iria conseguir ficar sem ela.
     Ele caminhou tanto sem ter noção e quando reparou estava no jardim do Ryan. Ele sentiu-se estranho a princípio. Troy já estava habituado a não ter o Ryan naquela casa. Ele estava habituado a não ter o Ryan. Mas sabia bem saber que ele estava lá dentro de novo. Bateu à porta e ele apareceu com o pijama vestido e os olhos sonolentos. Troy sorriu.
- Já devia ter adivinhado. 
- O que queres, Evans? - perguntou num modo brincalhão enquanto um sorriso nascia nos seus lábios e esfregava os olhos.
- Queria ver-te. Bora ao mar?  
- Claro. Deixa-me ir buscar a Marley. Entra. 
     Troy entrou na casa do seu melhor amigo. Estava tal e qual de como se lembrava. O mesmo tapete castanho à entrada, o espelho de moldura dourada em cima da mesa junto à parede esquerda. O longo cilindro cheio de chapéus de chuva, as molduras com fotos do Ryan em bebé, da viagem do senhor e senhora Bennett a Alemanha a segurar Ryan com um ano de idade. Ele e o Ryan a pousar com os seus troféus de surf do primeiro campeonato. 
- Está tudo igual. 
- Nem tudo - ele ouviu Ryan murmurar ao fundo do corredor. 
     Ele seguiu Ryan até à cozinha e bebeu um copo de água. Depois foram para o quarto dele. Troy sentiu-se deslocado. O quarto dele estava diferente. Até a cor das paredes. Bem, parece que nem tudo está igual afinal. 
- Quando mudaste o quarto? Está diferente. 
- Não sei. Quando cheguei o quarto já estava assim. - Encolheu os ombros. - Os meus pais deviam ter achado que precisava duma mudança.
     Ryan despiu a t-shirt e as calças do pijama e trocou-os por uns calções de banho e uma rashie azul e preta. Seguiram para a garagem onde tiraram a Marley para ver a luz do dia e foram para a casa de Troy buscar a prancha dele e trocar de roupa. De lá, foram directos para o mar onde apanharam várias ondas juntos, como nos velhos tempos. Ryan estava muito melhor. Os seus carves mais acentuados, a posição na prancha mais natural, e o motivo de inveja de Troy, os seus aéreos eram executados na perfeição. Os dois começaram a esquecer-se do surf e começaram a brincar ou com o outro na água, roubando as ondas um ao outro, e o mais importante, divertindo-se.
     O duo saiu do mar a morrer de cansaço e fome. Antes de irem para o bar dos pais de Troy, foram colocar-se debaixo dos chuveiros da praia para tirar a água salgada do corpo. Uma vez no bar, que estava com alguns clientes, ajudaram Charlotte e como recompensa ela preparou-lhes duas tostas mistas, deu-lhes um pacote de batatas fritas e dois Ice Tea de pêssego. Com o lanche numa mochila, Ryan e Troy pegaram nas bicicletas e foram para a gruta onde colocaram a habitual toalha lilás no chão e apreciaram o pôr do sol. A conversa fluiu muito bem até haver um silêncio interrompido pela pergunta que assombrava Ryan.
- Ryan, porque é que desapareceste?
     Ryan ficou com os olhos postos em Troy até virar-se para o oceano.
- Bem - ele respirou fundo e soltou um sorriso amargo. - É uma longa história. - Visto que Troy continuava à espera da sua explicação, Ryan continuou. - Lembras-te do meu aniversário de dez anos?
- Sim, foi mesmo no final do verão e o último dia em que te vi.
- No final desse dia, depois de teres ido embora, fiquei doente. A princípio os meus pais pensaram que estava mal disposto de estar a comer e a correr dum lado para o outro. Só que não eram dores de barriga normais. Nessa noite fui ao hospital e fui diagnosticado com cancro - a expressão de Troy mudou completamente. - Tinha cancro no estômago. Os médicos disseram que ainda estava na primeira fase, que podia ter alguma hipótese. Os meus pais estavam tão esperançosos. Eu só conseguia pensar que ia morrer.
- Porque não me contaste?
- Para quê? Como? Não ia simplesmente aparecer à tua porta e dizer "Olá, tenho cancro no estômago! Vamos andar de bike hoje?". Eu não queria olhar-te nos olhos porque isso significava olhar para um futuro que não ia ter. Naquela altura, tudo parecia perdido.
- Então o que aconteceu? Estás aqui. São e saudável, presumo - Troy conseguiu colocar um sorriso no rosto.
- Um milagre, na verdade. Quando fui diagnosticado, comecei logo os tratamentos e fiquei curado, digamos. Mas depois logo tive outro tipo de cancro. Tumor cerebral. Desenvolveu bem devagar. Por isso é que fiquei ausente. Tinha 11 anos quando fui diagnosticado. Os tratamentos, o caos, e o sofrimento começaram de novo - ele fez uma pausa. - Fiquei dois meses livre dos hospitais. Pensei que estava curado. Que podia voltar para casa. Mas numa consulta de rotina descobriram o tumor e lá voltei para uma cama de hospital - Ryan engoliu em seco tentando controlar a dor que vinha das memórias. - As dores de cabeça começaram a surgir, depois foram distúrbios visuais e fraqueza. Mais rápido do que pude imaginar estava eu sem conseguir andar e com dificuldades a falar. Passava os dias na cama, a ouvir a mãe chorar e o pai a gritar com os médicos. Eu estava demasiado fraco para a quimioterapia, numa certa altura. Os dois estavam tão desesperados que me metiam num avião fosse para onde fosse à procura duma cura. Gastaram tanto dinheiro comigo que uma vez tive de lhes berrar para ficarmos num hospital público. Eu já não tinha hipóteses de qualquer maneira.
     Ryan levantou o canto direito da boca. Parecia sorrir só que os seus olhos estavam cheios de água. Troy não estava a aguentar ouvir aquela história. Ele queria pedir-lhe para parar se quisesse, só que talvez fosse bom ele desabafar sobre este assunto. Portanto não disse nada. Ficou a ouvir o seu melhor amigo a relatar o momento mais difícil da sua vida.
- Estava na última fase do cancro - ele respirou fundo, limpando os olhos com as costas da mão. - Os médicos diziam que tinha dois meses ou menos de vida. Estava numa condição tão má. Não comia. Não me mexia. Não falava. Passava os dias a dormir. Às vezes a minha mãe acordava-me de uma em uma hora para se certificar que não tinha morrido. Até que um dia, quando acordei, senti-me bem. Verdadeiramente bem. Parecia que estava a sonhar. Os meus olhos não me falhavam. As fraquezas tinham desaparecido. Conseguia mover as pernas e os meus braços obedeciam-me. A minha fala estava clara como água. Belisquei-me tanta vez que lembro-me de ter feito uma ferida. Julguei estar morto e no céu ou a sonhar.
- E estavas?
- Não. A minha mãe já não me via a andar há quatro meses e a primeira coisa que fiz foi caminhar até ela. O chão estava tão gelado e fresco. Eu estava completamente arrepiado até ver o olhar surpreso e preocupado dela em mim. Ela levou as mãos à boca e sorriu-me. Foi o primeiro sorriso a sério dela à meses. Aqueceu-me. Correu para mim e abraçou-me enquanto chorava. Eu chorei com ela. O meu pai veio a correr do trabalho e quando me viu desatou a chorar também. O médico um pouco mais tarde apareceu e ficou chocado com a mudança do meu estado. Confirmou que estava completamente curado. Fizemos tantos exames que tenho ainda a marca de algumas seringas. Todos os resultados disseram que eu não tinha problema nenhum. Não estava completamente saudável devido ao soro, mas de resto estava tudo em ordem. Foi o dia mais feliz da minha vida. A seguir a este.
     Troy só conseguiu abraçá-lo. As palavras não saiam da sua boca. Nunca lhe ocorreu que ele estivesse a lutar entre a vida e a morte durante este tempo todo. Apesar de ele ainda desejar que Ryan lhe tivesse contado, o importante é que ele está aqui agora, vivo, saudável e no lugar que ele pertence. Ao seu lado.
- Abraça-me durante mais dez segundos e vou perguntar-te se não és secretamente gay, Evans - murmurou.
- Cala-te - soltou-se do Ryan. - Ainda bem que me contaste. E não acredito que tiveste de passar por isso tudo. É demasiado surreal. Mas estás bem agora. Estás de volta - sorriu. - Temos um mar por descobrir. Lembras-te? - Aquela frase foi tirada da série favorita dos dois de quando era crianças. Desde então que eles levam-na como lema da amizade deles. Ryan riu-se. - O que foi? Diz a outra frase, Bennett.
- Não acredito nisto - murmurou baixinho enquanto se ria. - O mar e o sol - completou. - O mar e o sol, Evans.
     Troy deu leves palmadinhas no ombro do seu melhor amigo e os dois ficaram a falar sobre os seis anos separados até a lua ser o único suporte de luz. Ryan ficou a jantar na casa dos Evans e depois o Sr. Bennett foi buscá-lo. Apesar de tudo, o dia tinha sido fantástico. Ele tinha o seu melhor amigo de volta, finalmente. Como se ele nem tivesse partido. A história dele deixou-o bastante grato pelo que tinha na sua vida. Talvez ele devesse contar à Catarina e, até ao Ryan, sobre isto tudo. Ele vai-se arrepender das duas formas: se contar ou não. Mais valia eles saberem com o que estavam a lidar caso algo lhes ataque. Mas Troy decidiu esperar. Se calhar está a fazer caso a mais disto. Não, não estou. Ele matou a Mondy. Ele aprisionou-me no meu próprio corpo. Ele tocou na Catarina sem qualquer problemas. Isto não é brincadeira nenhuma.
     Ao deitar-se na sua cama, adormeceu logo. No entanto, o sono não lhe permitiu algum descanso. Assim que o seu consciente adormeceu, ele começou a ter vislumbres de momentos. Como de costume, eram memórias do Tema. A princípio eram memórias leves, como um passeio com a Luna na rua, depois passou para os olhos vermelhos da mulher da luz branca, seguindo duns beijos trocados pelo Tema e ela até que novas pessoas entraram na cena. Um homem alto de pele negra, forte mas amigável, e um outro que lhe era tão familiar. Um ruivo de olhos negros completamente pintado de sardas. Ele ouviu um nome. As memórias começaram a atacar-lhe como flechas. Tinha tremores e suores frios. Sem se aperceber Troy começou a gritar e a mexer-se na cama descontroladamente. Acordou quando os seus pais apareceram preocupados à porta do seu quarto. Uma memória apagada por ele reapareceu e de repente, tudo fez sentido. Ofegante murmurou o nome:
- Noir. 


◄◊►



     O olhar culpado e preocupado dos pais  foi a garantia de que não tinha sido só um pesadelo. A memória era real. Noir era real. Tema era real. A Escuridão era real. O perigo era real.
- Porque não me contaram?
- Troy... - começou a mãe.
- O que vos passou pela cabeça? Eu tinha o perfeito direito de saber disto! Era suposto continuar a minha vida na esperança que tudo o que aconteceu naquele dia fosse uma mentira?! O que vos podia acontecer se eu não me tivesse lembrado? E se eu não me lembrasse de todo? Era suposto vocês verem-me a transformarem-me num monstro?  - A mãe já estava a chorar. O seu pai encarava o chão de embaraço. Tinham falhado. - Digam qualquer coisa!
- Troy - ela chamou. O seu tom de voz tinha mudado. - Troy acalma-te.
     Uma luz azul tingiu o quarto. Troy procurou a fonte dessa luz e viu as suas mãos a irradiar poder. Ele estava tão zangado que accionou os seus poderes. Os poderes do Tema. Mas ele não queria atingir os seus pais. Não queria magoá-los. A sua raiva virou preocupação e medo.
- Afastem-se de mim, por favor - ele não conseguia controlar a luz. Troy levantou as mãos a indicar para se afastarem mas isso só resultou na catástrofe. Uma bola de luz foi lançada em direção à porta, quase ferindo os seus pais. - Vão se embora! Já!
- Não! Troy, ouve-me - interveio o seu pai. - Escuta só a minha voz, está bem? - Ele assentiu, com medo. - Respira fundo. Calmamente. Ouve só a minha voz. Agora, respira, inspira. Respira, inspira. Concentra-te em ti, encontra o teu centro. Calma e lentamente. Demora o tempo que precisares.
     Ele seguiu as instruções do seu pai e a luz oriunda das suas mãos foi desaparecendo. Exceto o medo. O seu pai avançou para ele e abraçaram-se. Troy agarrou-se a ele fortemente. Há tanto tempo que não sentia afecto pela parte do seu pai. Pelo menos, não assim. Ele agora percebia o medo dele. O porquê dos dois estarem sempre com receio que ele um dia desaparecesse no mar. Foi daí que o Noir surgiu, que o mal surgiu para os atormentar. Troy respirou fundo.
- Desculpa-me, está bem? Por tudo - ouviu o seu pai dizer. Outros braços o envolveram.
- Só queríamos proteger-te. Não queríamos que a tua vida girasse em torno desse momento. Logo depois o Ryan partiu e foi tão difícil arrancar-te um sorriso - Troy fitou o olhar dos seus pais. Ele agora percebia.
- Eu é que peço desculpa por ter sido um idiota este tempo todo.
- Está tudo bem agora, querido - disse a mãe.
- Bem que queria - Troy respondeu sem pensar. Agora teria de lhes explicar tudo.
- O que queres dizer? - Troy ficou com o olhar culpado. - O que aconteceu, Troy? - perguntou o pai.
- Este não foi o primeiro incidente. - Troy respirou fundo e disse muito rapidamente. - A Escuridão já me possuiu uma vez. - Os seus pais ficaram sem palavras. - Mas foi na boa, quero dizer, não morri - acrescentou, a tentar acalmá-los. - Mas a Mondy morreu - pensou alto. - Oh, merda. 

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