Underneath: Qaya #37

- Não acredito que a vida do nosso filho está posta nas mãos daquelas pessoas - disse Charlotte ao sentar-se no banco de passageiro do carro. - Tenho a certeza que sabem o que estão a fazer mas não parece nada! Steve, o que vamos fazer? O Troy está noutra galáxia - exclamou a tomar finalmente noção do que se estava a passar. - A Catarina foi raptada por Júpiter! - abanou a cabeça. 
- Não há muito que possamos fazer. Não podemos fechar os olhos e aparecer ao lado do Troy quando os abrirmos. 
- Não podemos ficar de braços cruzados! Achas que a Blair e a Paula vão ficar contentes quando lhes disser que o Ryan está com o Troy e a Catarina a dormir na casa de estranhos? O Ryan está desaparecido à quase dois dias! A Catarina está noutro Planeta! Steve, não podemos ficar quietos! 
- Queres ir falar com eles? Pode ser que nos deixem ajudá-los. 
       Charlotte assentiu, ansiosa. Começou a sair do carro, assim como o marido, e parou, com uma mão na porta e os olhos no céu. Três luzes distintas, uma laranja, outra roxa e outra dourada e azul, subiram pelo céu como estrelas deixando um rasto brilhante que desapareceu num instante. Num piscar de olhos as luzes tinham-se misturado com o céu e recusado a ajuda deles. 


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- Vais entrar comigo? - perguntou ela, à entrada de casa. Júpiter tirou o olhar do pôr do sol. 
- Sim. 
- A mãe do Troy deve estar cá. O carro está estacionado aqui ao pé - ela tirou a chave de casa do bolso de trás dos calções. - Devo apresentar-te com que nome? 
- Escolhe tu - respondeu a olhar envolta. Um gato laranja apareceu. - Os pais dele sabem onde ele está?
- Sim. Mas não há nada que possam fazer. Willy! - exclamou. Largou a chave e foi dar festinhas ao gato. - Já não te via há séculos. 
- Catarina? - a mãe chamou.  
- Porta-te bem - murmurou para Júpiter. 
- Onde estavas? A Charlotte disse que ias dormir na casa das gémeas. Não me lembro delas, já mas apresentaste? 
- Não. Aaa... Elas são novas na escola. Conheci-as à pouco tempo. 
- E quem é este? 
     Catarina olhou para Júpiter. Parecia agora um rapaz de dezassete anos com dez centímetros a menos. Ela ficou estupefacta a olhar para ele. 
- Aaa... É o... Tristan - disse ela. - Ele está a passar férias cá. 
- A escola ainda não acabou. 
- Ele é estrangeiro. Certo... Tristan? 
- Oui - respondeu. 
     Os três entraram dentro de casa e viram logo Charlotte e Steve sentados no sofá com um cheiro a café a rodear a sala. 
- Catarina! - exclamou Charlotte. Steve quase se engasgou com a bebida. 
- Olá, Charlotte, Steve - sorriu, muito desconfortável. 
     Foi abraçar a mãe de Troy.
- Está tudo bem. Tenho tudo sob controle. Ajam naturalmente, por favor - murmurou.  
     Deu dois beijinhos ao pai de Troy e ficou de pé ao lado de Júpiter. 
- Estão em pé porquê? Sentem-se. Catarina traz aquelas bolachas de chocolate - disse a mãe. 
- Já estamos de saída, Paula - disse Charlotte. 
- Obrigado pelo café, estava delicioso. 
     Antes de ir para o hall, Charlotte deixou a mão cair no ombro de Catarina. A mãe depois acompanhou-os até à porta. 
- O Tristan fala? 
- Oui - disse ele. Catarina não queria acreditar naquela situação. 
- Ele pode ficar para jantar? 
- Tens a certeza? Quer dizer... Posso falar contigo? 
- O que foi? - perguntou depois de estarem longe do rapaz. 
- Quem é este rapaz? É um amigo novo do Troy? 
- Não, mãe. Conheci-o esta manhã. 
- Passaste a tarde com ele, Catarina? 
- Bem, não toda - respondeu. - Mas sim. 
- O que o Troy acha disto? Vocês estão bem? Podes falar comigo. 
- O Troy não acha nada. Eu e ele acabámos...
      A mãe arregalou os olhos em surpresa e depois abraçou-a, sem saber o que mais fazer.
- O que aconteceu? Vocês estavam tão bem no outro dia... Ele fez alguma porcaria? Diz-me que eu...
- Não, mãe. Não foi nada disso - garantiu-lhe. - Vou mandar o Júp... Tristan embora. Posso jantar no quarto? Estou cansada.
      Catarina nunca se tinha sentido tão afectada por palavras que ela própria dissera. Nunca tinha considerado dizê-las mas ela sabia que quando ele regressasse não seria para estar com ela. O pior de tudo é que era somente ela a sofrer. 
- Podes, sim. Há duas caixas de gelado no congelador. Acho que está a dar uma maratona de Sex and the City. Se precisares de mim estou enterrada no sofá - beijou-lhe o rosto. 
     Catarina conseguiu mostrar-lhe um sorriso mas sentia-se muito mal de repente. Levou Júpiter para a rua. 
- Estás bem? 
- Estou. Hum, podes teletransportar-te para o meu quarto? Disse à minha mãe que queria ficar sozinha. Ela só deve passar pelo meu quarto quando reparar que não vou descer para ver televisão. Ainda bem que ela não me fez um questionário. 
- Podemos ficar até a tua mãe adormecer. Mas temos de ir depois. A Jade já deve saber que cá estou outra vez. 
- És o pior raptor de toda a história - comentou ela. 
- Se quiseres posso acorrentar-te à cama quando voltares. Que achas? - ele voltou à aparência normal. 
- Se essa era a tua ideia de me assustares falhaste completamente. 
      Ele cruzou os braços. - Não me tentes. 
- Está bem. Vai lá para o meu quarto e faças o que fizeres não toques nos posteres. Ouviste-me?
- Oui - respondeu enquanto desaparecia numa luz azul bebé. 


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     Axel permanecia na mente de Melody. Cansada e triste, ela abraçou-se à camisola dele. Não a queria deixar com odores ou tirar o cheiro dele do tecido. Apesar de sentir uma imensa tristeza digna de lágrimas, ela conseguia esboçar um sorriso ao lembrar-se do olhar que ele lhe lançava. Aquecia-lhe o coração mas logo esse calor desaparecia com a dúvida, ou talvez certeza, de que nunca o voltaria a ver. 
     Melody virou-se para o lado. A irmã dormia com o rosto carregado, como se estivesse a ter um pesadelo. Ela passou a mão pelo rosto dela e Violet despertou. Os olhos mal abriram mas o rosto relaxou logo e voltou a dormir no segundo seguinte. Devagarinho, Melody moveu a cabeça de modo a ver se todos estavam a dormir. Pareciam estar e por isso ela tentou também. 
      Minutos depois, a voz do Ryan ouviu-se, tão baixinho quanto um sussurro. Uma frase... Estava à espera de resposta. Estaria ele a tentar falar com o Troy? Podia estar a falar enquanto dormia. Ela olhou para ele. Estava dois metros mais à frente e tinha o rosto virado para Troy. Eve tapava-o do seu campo de visão. Ryan voltou o rosto e ficou a olhar para o tecto. Apesar do rosto relaxado, Melody podia jurar que tinha visto uma lágrima a cair-lhe pelo canto do olho até à têmpora. Estaria Ryan a chorar? Ele virou o rosto e quase a apanhou a espreitar. Melody sentia o olhar dele atrás do seu pescoço e tentou ficar quieta o máximo que conseguia. Ouviu Ryan mexer-se nos cobertores e voltou a espreitar. Ele estava de costas para ela.  
     Melody ficou a olhar para a escuridão do tecto com os pensamentos a saltarem de um lado para o outro. O que estaria a passar pela cabeça do Troy para ceder daquela maneira? De que forma a Violet poderia ajudá-lo? Ela tinha a sensação de que Ryan se culpava pelo que aconteceu ao Troy de alguma maneira. No fundo, ela também culpava-se. A irmã de certeza que sentia um fardo enorme nos ombros. Se o Ryan entrasse no quarto dela a...
     O coração dela acelerou e borboletas dançaram dentro dela.
     Ela abanou a cabeça e respirou fundo. Virou-se e abraçou a camisola do Axel com força. O que se está a passar comigo? 


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     Depois de uma noite muito mal passada, o grupo, juntamente com Eve, começou a caminhar para a biblioteca. Estavam todos meio a dormir em pé, inclusive Troy. Eve era a única que estava energética e com vontade de fazer muito. Estar sem exposição à luz natural começava a manifestar-se neles. Para Violet, as paredes do túnel começavam a dar-lhe uma sensação claustrofóbica. O som da água a pingar era torturante. Só tinham passado um dia naquele ambiente e já sentiam-se esgotados. As gémeas perguntaram-se como é que Eve conseguia permanecer neste túnel sem sucumbir ao pesadelo. 
      Melody tinha a certeza que já era quase hora de almoço quando uma luz começou a preencher o túnel. Esta luz era diferente; Era grandiosa e brilhava muito intensamente. A luz ao fundo do túnel mostrava o seu fim e a entrada para a Phjalk Libertyr. O rosto de cada um foi preenchido por um sorriso. 
- Finalmente! - exclamou Troy animado. 
- Ah, os meus olhos... - Ryan resmungou, como se tivesse finalmente acordado. 
     Eles saíram pelo portão de ferro enferrujado. Eve não cabia na abertura e Troy congelou o ferro para depois o partir. 
      Diante delas a Phjalk Libertyr reluzia como se fosse feita de ouro e todos os raios de luz incidissem nela. Ao redor, um jardim verde e colorido crescia. O espaço estava preenchido pelo som de aves e duma corrente de água algures. A água das fontes de cada de lado do passeio eram irresistíveis mas nenhum deles se atreveu a sair do caminho até à biblioteca. Subiram os degraus até à grande porta alta e robusta e depararam-se com pilares grossos e estantes infinitas de livros.  Assim como lá fora, parecia que raios de luz incidiam mesmo nas estantes fazendo-as brilhar como uma pedra preciosa. 
       Nas estantes e nos pilares estavam gravados motivos vegetalistas incluindo pássaros pequenos e os símbolos dos três Planetas e da sua respectiva Estrela Vital - Tema. Largos sofás repousavam junto à entrada e caminhando mais para o centro do edifício podia-se encontrar uma mesa redonda. Por cima, um grandioso lustre iluminava ainda mais o espaço. As estantes rodeavam a mesa redonda parecendo um labirinto. A parede oposta estava recheada de livros mas nas paredes laterais estavam dispostos diversos quadros. 
- Como vamos encontrar o que procuramos? 
- Não faço ideia mas não me importo nada de passar a noite a ler cada um destes livros - suspirou Melody, a avançar para as estantes. 
- Não vás - disse Ryan a agarrar-lhe o braço. - E se tiver armadilhas? De certeza que há aqui conhecimento muito importante. 
      Troy avançou e tocou num ponto do espaço. Como se tivesse descoberto uma parede invisível, ela vibrou e quebrou-se como vidro. Os pedaços levantaram-se do chão e formaram um homem de pele achocolatada e forte com uns olhos verdes intensos. 
- Qaya. Já estava a perguntar-me quando irias aparecer. 
- Saeva, daqui não passas - disse ele com a voz poderosa e cortante. Com um movimento de mão, a mancha negra saiu do corpo de Troy e ficou presa fora da biblioteca. - Foi uma boa tentativa. - Saeva deitou a língua de fora para ele como um rapazinho. - Não posso devolver-te a tua outra metade - informou. - Foste muito imprudente, Troy. 
- Não preciso dos teus sermões. 
- Não há tempo para tos dar. Tu sabes muito bem o que fizeste, não precisas dos meus sermões - Qaya avançou para as estantes depois de lançar um olhar a Ryan e às gémeas. - Vou mostrar-vos algum do conteúdo desta biblioteca - informou. - A Lua faz questão que vos revele como começou isto tudo. O início, como Tema surgiu. Venham - gesticulou com a mão. - Sentem-se. 
      O grupo, depois de pousar as malas, sentou-se nas cadeiras da mesa redonda e ficaram a olhar uns para os outros sem saber o que fazer. Minutos depois, ele apareceu com um livro grande e largo de capa azul escura. As páginas estavam a amarelar mas a tinta estava impecável. Ao passar os dedos pelas páginas, as palavras remexeram-se como se tivessem vontade própria. Ele sentou-se finalmente e o livro começou a mostrar imagens da história da família do Tema como hologramas. 
- Tudo começou há quase seis bilhões de anos. A família do Tema vivia numa galáxia longínqua com outros perigos e outros poderes onde eram uma espécie de família real - o livro moveu as suas páginas e mostrou um retrato da família. Todos loiros com olhos azuis brilhantes à excepção da mãe e de um rapazinho, Tema. 
- Os Alexander governavam Lys como protectores da Luz e Guardiões da Magia do Ar. Lys era um planeta pequeno dividido em seis reinos. Cada reino especializava-se numa determinada área. Por exemplo, o reino de Almirande especializava-se na ciência e estudava os porquês que a magia não respondia. Esse reino foi responsável pela criação das camadas entre o Planeta e o espaço. A Estrela da galáxia, Glimeia, estava nos seus milénios iniciais e soltava uma luz muito intensa. A órbita de Lys era relativamente próxima de Glimeia e com o surgimento de pessoas e a descoberta do poder do Ar foi possível permitir que a vida continuasse. 
      Então é por isso que o Saeva me tratou por Alexander, pensou Troy, a observar o rosto do pai do Tema. Subitamente lembrou-se de já o ter visto, assim como a mulher ao lado dele. Ambos possuidores de um rosto alongado e cabelo loiro claro. Por mais que tentasse, ele não conseguia lembrar da voz que tinha ouvido.
- Como surgiram pessoas nessa galáxia? 
- Não foi como os humanos da Terra. Em Qaya eu criei os meus seres a partir do meu poder. Demorei imenso tempo a dar-lhes todos os aspectos que humanos da Terra têm. Inicialmente pareciam... como chamam... robôs?... Foi uma jornada. O Noir gozava tanto com eles que me dava pena mas lá consegui formar a minha própria raça humana. Em Lys não sei bem como aconteceu. O Tema contou-me uma história uma vez mas não sei se é verdade. É pouco provável. Ele disse-me que uma estrela caiu e fez uma enorme cratera no Planeta. Da estrela nasceram um homem e uma mulher e a partir daí tudo se começou a formar. Parece-me um pouco história que se conta aos meninos antes de irem dormir. No entanto, é verdade que a capital - Aura - foi construída numa cratera e os seis reinos à sua volta. 


- Nöelle, querida, despacha-te!
- Vou já mãe! - respondeu ela como se não tivesse obrigações nenhumas.
     Nöelle, uma rapariga aventureira que não se rendia aos comportamentos formais que lhe eram propostos, preparava-se para mudar de casa. Ela desde pequena que tentou conciliar a diversão que devia ter e os estudos sobre o Reino que crescia em todos os campos pois um dia esse mesmo Reino dependerá dela. E esse dia não tardava nada a chegar.
      Lys era um Planeta pequeno numa galáxia gigantesca. Era um dos três Planetas com água e ar respirável. A partir daí, a natureza nasceu e com ela trouxe os encantamentos mágicos que o povo tanto protege. A magia do Ar é praticada em Lys com frequência apesar de poucos nascerem com tal dom. Aliás, nascer com tal só oferecia responsabilidades que Nöelle não queria, apesar de já se ter conformado.
drawing made by lathander1987
      Ela despediu-se da sua casa, ainda a colocar o brinco que teimava a não entrar no buraquinho da orelha e respirou fundo. Tinha sido uma correria até sentar-se finalmente no coche. Como sempre, ela tinha ido dar uma volta pela aldeia ao lado da sua casa, depois foi estudar mais plantas e recolher amostras para colocar no seu quinquagésimo diário e só depois dos sinos tocarem o meio dia é que ela deu conta que devia estar a preparar-se para a viagem. A mãe, já habituada aos costumes da filha, pediu o coche dez minutos mais tarde do que suposto dando hipótese à rapariga de se colocar no vestido oferecido pelo pai e arranjar o cabelo loiro.
- Ouvi dizer que o rapaz não fala muito - disse-lhe mãe. - Mas é muito inteligente.
- Parece-me que nos vamos dar bem, então  - respondeu Nöelle a fitar a paisagem lá fora.
   

      As imagens mudaram para um palácio grande com várias torres de tecto azul. Estava no centro de tudo. Depois das imagens do castelo apareceram o pai e a mãe do Tema na grande varanda a acenarem vivamente para a multidão que se estendia. Troy só notou no bebé passado uns segundos. 
- É o Tema? 
- Não. É o mais velho dos seus irmãos, Argus. O povo adorava os seus Guardiões e a chegada de um sucessor foi muito bem vinda e um pouco esperada. Alaric e Nöelle tiveram mais duas crianças antes de Aaro nascer: Nyla e Andre. 




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      O castelo parecia não ter paredes ou janelas. O ar que circulava era tão vigorante que Nöelle quase se sentiu em casa. Quase.
      Várias pessoas estavam à espera dela na entrada para lhe dar as boas vindas.
- Posso? - perguntou-lhe um empregado.
- Claro mas cuidado por favor - respondeu ao entregar-lhe a mala com o seu diário em construção.
- Não é lindo, Nöelle? - a mãe olhava para o interior do palácio pasmada.
- É magnífico. Nem acredito que vou viver aqui.
      Depois de passarem pelo corredor à entrada, apareceu uma grande escadaria que se dividia em duas. As janelas era gigantescas e enormes. As cortinas de tecido leve balançavam com a brisa. As paredes brancas estavam decoradas com pinturas e alguns espelhos longos. Havia vasos de flores quase tão altos quanto Nöelle, as flores dentro deles eram enormes e soltavam um perfume encantador. Um lustre enorme - o maior que ela já tinha visto - estava pendurado mesmo no centro da grande sala e parecia-se com um lilium de vidro com as suas ramificações a percorrer o tecto.
     As duas subiram a escadaria e acabaram por descobrir o acesso à grande varanda por detrás das janelas, ou melhor, portas de vidro. O chão, agora revestido por um tapete azul escuro, lembrava a Nöelle de um lago cristalizado. Os corredores era largos e decorados duma maneira requintada. Os quartos eram espaçosos e abertos e por isso entravam muita luz e ar.
- Acho que podes ir dar uma volta - disse-lhe a mãe. - Eu vou chamar alguém para me ajudar com as malas.
- Tens a certeza?
- Absoluta. Depois podes mostrar-me tudo.
       Depois de trocar o vestido por umas calças brancas, botas e um casaco justo, ela saiu do quarto e tentou entrar na varanda. Rodou a maçaneta comprida e foi cumprimentada por uma brisa. Havia um arco de jardim grande e um mais pequeno de cada lado da varanda com plantas a treparem. As flores estavam agora a formarem-se. Daqui a pouco iriam florir. Uma mesa redonda pequena com duas cadeiras estava mais ou menos a meio da grande varanda com um jarro transparente sem nada. Nöelle olhou à volta e decidiu dar mais vida àquele lugar depois de se habituar ao palácio. Saiu da varanda fechando as portas e desceu a escadaria.  Ela fez o seu caminho pela esquerda e abriu as grandes portas. Mais quartos, algumas salas vazias, outra com um piano, uma biblioteca e por fim uma porta no final do corredor que dava para um túnel com paredes e tecto de vidro. À volta ela conseguia ver as plantas, as flores e vegetais a crescerem - uma estufa. Caminhou para a porta na outra ponta e foi devorada pelo cheiro da natureza. Estava também um pouco calor mas uma brisa fresca tentava fazer o seu caminho por entre as folhas. Nöelle viu todas as plantas que ela já tinha recolhido amostras. Conhecia-as todas. Vasos gigantes com pequenas árvores quase a faziam tropeçar. Ao fazer o seu caminho à procura de plantas novas descobriu uma janela. Abriu-a e logo sentiu-se mais aliviada. As folhas reagiram à brisa e Nöelle viu uma cabeça loira mais ao fundo. Ela caminhou de fininho até lá, passando o túnel e a mesa cheia de flores amarelas e brancas.
- Pensava que só chegavas no final da semana.
      O rapaz assustou-se com a voz dela e levantou-se logo ficando de frente para ela. Estavam agora na zona de árvores pequenas onde vasos grandes e rechonchudos ocupavam muito espaço.
- Estás a ler o quê?
- Aaa... Jardinagem para novatos - respondeu. Os olhos dela aumentaram.
- Acho que é o teu dia de sorte porque eu diria que sou uma mestre na jardinagem. Consigo dizer-te todas as espécies que aqui estão. Mas aposto que há por aqui algures uma espécie nova - ele ficou a fitá-la com uma certa expressão assustada e admirada. - Posso ver o teu livro?
      Ele entregou-lho. Tinha quatrocentas páginas e apesar de ter muitas explicações em como cultivar, tinha vários capítulos com as cem espécies mais comuns em Lys.
- Queres ajudar-me? O teu livro não tem todas as espécies mas tem as suficientes.
- Sim, claro. Começamos por onde?
- Aqui mesmo - sorriu-lhe. - Como te chamas?
- Alaric.
- Nöelle - apertaram as mãos. - Sabias que...
      Nöelle começou a contar-lhe tudo o que sabia sobre as plantas que iam examinando. Ela não tinha receio nenhum de estar a aborrecê-lo pois Alaric parecia o tipo de rapaz que demonstra os seus sentimentos muito facilmente. Ele não estava a prestar atenção a cem por cento pois achava a rapariga ao seu lado muito mais interessante que a flor na sua mão. No entanto, isso não o impediu de aprender uma coisa ou duas.
- Hey, Nöelle?
- Sim.
- Anda cá. - ela aproximou-se. - Como se chama esta flor? Não a encontro no meu livro. - Os olhos dela brilhavam.
- Alaric, encontraste a espécie nova! - disse ela, entusiasmada. Ela começou a tocar nas pétalas azuis esbranquiçadas. - São tão macias. Parece a flor do lustre - um Lilium.
- Não tem nome ainda.
- Então damos-lhe nós um nome! Tem de encaixar com a descrição da flor e também...
- Eu sugiro Nöelle - disse, interrompendo-a. - O teu nome é digno duma flor.
- Não há necessidade de me dizeres essas coisas, Alaric - replicou a sorrir ligeiramente enquanto analisava caule da flor.
- Qual é o problema? - ele começou a sorrir também. - Fica Nöelle - disse muito seguro. - Combinado?
- Se as pessoas detestarem é culpa tua - ela tirou os olhos da flor. - Mas combinado.
- Nöelle! Pelos vistos o rapaz já chegou! Temos de te preparar, querida! - ouviu a mãe gritar pelo túnel.
- Parece que vamos encenar o nosso encontro para os nossos pais dentro de pouco tempo - fez uma vénia e Alaric escondeu o riso atrás dos dedos. - Até já! - sorriu.

      Qaya moveu a mão e as páginas moveram-se novamente mostrando agora imagens dos filhos dos Guardiões de Lys. Argus era muito parecido com Alaric, seu pai, com os olhos azuis cristalinos e o cabelo com quase o mesmo tom. Ao contrário do pai, que tinha o cabelo curto, Argus usava os fios presos num rabo de cavalo baixo. Nyla, apesar de ser muito parecida à mãe, tinha as sobrancelhas grossas como as do pai. No entanto, mal se notavam devido à cor loira. Ela era a companhia de Argus em quase todas as imagens e podia-se ver que eram bastante ligados. 
- Argus era um rapaz bastante energético e aventureiro. Um pouco como a mãe. Ambos os pais concordaram em deixar os seus filhos viverem bem a infância antes de os sobrecarregarem com os deveres de um Guardião. 
- Eles todos iam governar Lys? - perguntou Melody. 
- Sim. Todos se tornariam Guardiões de Lys e Argus como é o mais velho, seria o líder. Se ele se casasse, o seu cônjuge só se tornaria um Guardião se o povo e os irmãos de Argus o achassem merecedor de tal. Muitas vezes isso não acontece. 
      Duas páginas do livro moveram-se. - Andre nasceu e foi o mais rebelde de todos. Pensava que por não ser o sucessor à liderança, não teria responsabilidades. Quando o Aaro nasceu, ele ficou muito protector do irmão. Apesar de serem todos muito próximos, Argus e Nyla geralmente isolavam-se de todos nas suas brincadeiras e isso incluía o irmão mais novo. Ele fugia do castelo várias vezes e ia brincar com as crianças da idade dele no parque junto com as crianças da cidade. 

- Onde estavas, Alaric? A rapariga já chegou, sabias disso? Encontras-te com ela? 
- Não, mãe, descansa. 
- Sabes que se a vires antes da cerimónia pode dar azar ao vosso governo. Isto é sério, Alaric. 
- Eu sei, descansa - beijou-lhe a testa. Pousou o livro na mesinha ao lado das poltronas. 
- O jantar está quase a começar. Precisas de vestir o teu fato. Vais ficar tão bonito nele. 
       Nöelle saiu do banho e com a ajuda da mãe e de uma rapariga chamada Clarice começaram a prepará-la para o jantar.
- Ouvi as raparigas dizerem que o rapaz é muito bonito e alto mas tem sempre um livro nas mãos. Talvez seja verdade que ele não fala muito.
- Eu também ando quase sempre com um livro nas mãos e não sou calada.
- É diferente, querida. A Clarice contou-me que a mãe dele está sempre a chateá-lo. Não admira nada que o rapaz prefira o silêncio e o sossego.
- Ele já é grande o suficiente para lidar com a mãe, não achas?
- Acho sim. Espero que saiba lidar bem com ela. - A mãe tinha acabado de trançar o cabelo da filha num coque. - Anda, é altura de pores o vestido.
     Ela foi para trás do biombo e colocou o vestido de alças, decotado em forma de U, branco com detalhes em prateado. Com a ajuda de Clarice fechou os botões atrás. Colocou as luvas brancas e calçou os saltos. Saiu detrás do biombo para a mãe a ver.
- Oh! Nöelle. Estás tão bonita - aproximou-se dela e agarrou-lhe as mãos. - Pareces uma princesa.
- Até me sinto uma, por tua causa.
- Querida, quero que oiças o que vou dizer com muita atenção. Se o rapaz for mal educado ou inapropriado diz-me logo, está bem? Não tens de conviver com ele fora dos assuntos de Lys, sim? Entendes? Não quero que sintas pressão em ter de falar com ele ou estar com ele. Vocês vão governar Lys juntos, não...
- Mãe, eu sei - interferiu. - Já me deste este discurso infinitas vezes. Vai tudo correr bem, tenho a certeza. Vamos?



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 - Aaro foi uma brisa de verão para os seus pais que andavam atribulados com os outros três filhos e os assuntos do governo. Alaric tinha cumprido o seu tempo no exército mas ainda andava muito atarefado. Nöelle, para além de ter colocado em prática novas leis e acções que enchiam a cabeça dela, tinha de cuidar dos quatros filhos. Argus e Nyla arriscavam a vida quase todos os dias e Andre desaparecia constantemente. Aaro não fez grandes loucuras apesar de andar atrás do irmão quase o tempo inteiro. Ele herdou os olhos azuis esverdeados da mãe e o sentido de responsabilidade do pai. Se Andre ia fazer algo que não devia, ele aconselhava-o a não fazer. Mas com o tempo, ele foi soltando-se da asa da mãe e assim como os outros irmãos aprendeu a aventurar-se. Depois Nina nasceu e ela iluminou a vida de todos. Era um pequeno anjo. 


      Nöelle chegou ao salão acompanhada pela mãe e Clarice. Ambas vestiam cores claras, como o resto das pessoas no salão de baile e apenas ela e um rapaz vestiam branco - Alaric.
- Consegues vê-lo, Nöelle?
- Consigo, mãe.
- Aquela morena deve ser a mãe dele.
- Onde está o pai?
- No trabalho, querida. Se ele conseguir vir hoje vai ser um milagre mas sabes como são as coisas com os militares. Agora vamos.
      Elas desceram a escadaria e um por um os rostos foram virando na direcção da próxima governante de Lys. A mãe de Alaric pousou os olhos em Nöelle e depois foi a vez do filho vestido num fato branco com detalhes dourados e azuis. Ele sorriu para ela. Uma voz alta falou:
- Por favor, dirijam-se para a sala de jantar. Serviremos a comida dentro de minutos. Obrigado.
      Todos encaminharam-se ordenadamente para a sala de jantar. Nöelle ficou numa ponta e Alaric noutra. Clarice sentou-se ao lado de Nöelle assim como o mãe. A mesa parecia não acabar. Um por um os lugares foram ocupados e os cartões com os respectivos nomes tirados.
- Achas que vamos comer o que eles produzem na estufa?
- É provável - respondeu-lhe Clarice. - Todas as flores que aqui vês foram plantadas na estufa ou no jardim.
- Que bom! Será que me deixam usufruir do jardim ou da estufa?
- É provável que não, senhorita.
- Não me chames isso, Clarice. Trata-me pelo nome. Temos a mesma idade, não há necessidade de haver formalidade, correcto?
- Sim - disse ela, a sorrir timidamente.
       Minutos mais tarde, a entrada foi servida.
- Alaric, então, está a gostar do castelo? - perguntou-lhe um homem com o rosto muito redondo e corado.
- Sim. É bastante grande - comentou.
- Estavas à espera do quê, querido? Lys oferece o melhor aos seus governantes - disse uma mulher dois lugares mais à frente.
- Só espero oferecer-lhes mais ainda.
      Todos na mesa exclamaram um Oh! ou soltaram risinhos. O ar encheu-se de música tocada por violinos e um piano. Alaric olhou para Nöelle a pedir socorro. Ela riu-se subtilmente. Surgiu muita conversa entre os convidados depois disso. Nunca houve um momento de silêncio. Finalmente, um dos comerciantes mais influentes de Aura colocou conversa com Nöelle.
- Nöelle.
- Sim?
- Está a gostar da vida no palácio?
- Ainda não observei muito. Cheguei há algumas horas atrás.
- Temos de mudar isso - disse-lhe, a lançar-lhe um sorriso. - O palácio e a cidade têm muito para oferecer - acrescentou.
- Pois - ela respondeu com o olhar posto no prato.
      O prato principal foi servido. O mesmo burburinho de conversa não parou, assim como os olhares entre Alaric e Nöelle. De vez em quando, Alaric gozava com alguma conversa paralela e Nöelle entrava na brincadeira. A mãe tinha reparado mas não lhe disse nada até ver a mãe de Alaric toldar o rosto numa expressão chateada.
- Querida, a mãe dele não está a gostar da vossa brincadeira - disse-lhe ao ouvido. Nöelle viu o olhar azul da mãe dele na sua direcção.
- Está bem. Eu paro - fez uma última careta a Alaric e depois de Clarice juntar-se ao riso ela parou.
       A sobremesa foi servida e ela viu o pai entrar de rompante pela sala de jantar. Nöelle levantou-se logo e correu para o braços dele.
- Estás atrasado!
- Desculpa, querida. Estou aqui agora. Serve?
- Perfeitamente - beijou-lhe o rosto ao que o pai retribuiu. - Anda, arranjamos-te um lugar.
- Não. Já comi, querida. Espero por ti noutra sala.
- Não, aa... acho que já todos acabámos de comer - disse a olhar para as pessoas na mesa.
       Todos tinham parado a conversa para os observar. A música ainda pairava no ar.
- Sabes que não é assim que as coisas funcionam.
- Glimeia está quase a pôr-se! Está na hora da cerimónia.
- Está bem. Vai para o teu lugar.
       Nöelle foi ter com a mãe. Comeu um último pedaço da sobremesa e ficou à espera do pai anunciar o início da cerimónia.
       A cerimónia decorre na varanda principal, aquela depois da escadarias. O antigo governante de Lys passa o seu título para os próximos que se tornam imediatamente Guardiões oficiais. Neste caso, apenas um governante estava vivo, um marechal do exército. Lys não tem governantes com o dom do Ar há duas gerações e por isso o povo votava nos candidatos que achava melhor. A população não estava feliz nem revoltada com o governo anterior só que dois governantes com o dom parecia dar boa sorte nas economias.
      Os Guardiões eram escolhidos desta maneira porque era simplesmente mais fácil. Desde de infantes, aqueles com o dom começavam a estudar o necessário para governarem. Muitos não queriam governar enquanto outros queriam desesperadamente. Quando um Escolhido decidia que não queria de forma nenhuma carregar nos ombros as responsabilidades de um Guardião, este renunciava-se do direito de e o povo entrava e escolhia um representante de qualquer reino numa eleição. Nöelle não queria estas responsabilidades, tinha medo de errar e prejudicar os reinos. Porém, da mesma forma que tinha receio, também sentia algo que a fazia incapaz de recusar definitivamente os seus deveres. Ela não se importava onde vivia ou com quem teria de partilhar o luxo do palácio. Ela importava-se com as pessoas que viviam com poucas condições. A sua aldeia tinha uma parte bem sucedida, enquanto outra passava-se por ignorada. Ela queria fazer melhor e dar mais àquelas pessoas.
      A varanda estava agora decorada com luzes e assim que as portas se abriram o som da multidão se fez ouvir. De repente sentiu os nervos apoderarem-se dela. O dia tinha chegado. A cerimónia ia acontecer.
      O pai e a mãe estavam ao lado dela. Alaric e a mãe estavam na outra ponta da varanda. As vinte e duas cadeiras foram preenchidas num instante. Como ninguém contava com o pai de Nöelle para a cerimónia, ele ficou de pé o tempo todo a segurar o seu chapéu junto ao peito. Por fim, Basmar entrou na varanda vestido no seu uniforme militar com o alfinete dourado com o emblema de Lys a brilhar. Ele piscou o olho a Nöelle. Basmar era como um tio para ela. Conhecia-o desde que era uma menina pequenina. Basmar silenciou tudo.
- Estamos aqui reunidos para celebrar os novos governantes e Guardiões de Lys - Glimeia estava a desaparecer no horizonte e Basmar parecia um silhueta negra com os olhos azuis muito intensos. - Pela primeira vez em duas décadas, temos dois jovens com o dom do Ar dispostos a dar a sua vida pelo Planeta e os seus Reinos - o povo gritou alegre. - Por favor, Nöelle e Alaric, avancem.
     Ambos levantaram. O vestido longo de Nöelle balançou com a brisa. Ela e Alaric ficaram lado a lado. Com os saltos, os ombros dos dois quase se aproximavam, mas mesmo assim Alaric conseguia ser mais alto que ela por quase quinze centímetros.
- Nöelle Olivier Cyanea, juras, perante o teu povo, proteger os seus costumes e festejá-los, salvaguardar a sua segurança e garantir a prosperidade dos Reinos que se submetem a ti?
- Eu juro - ela tinha medo que a voz lhe falhasse mas tal não aconteceu.
- Juras ajudar o teu povo quando ele te pede e ter consciência dos problemas existentes?
- Eu juro.
- Por fim, mas não menos importante, juras guardar a Magia do Ar de todo o negrume que possa tentar capturá-la?
- Eu juro.
       Basmar dirigiu-se para Alaric e fez-lhe as mesmas perguntas que fez a ela. Ele a todas respondeu "juro". Glimeia pousava no horizonte dando lugar à linda e estrelada noite.
- Eu, Basmar Cadell Solomon, agora, ex governador, nomeio-vos, Nöelle Olivier Cyanea e Alaric Baltimore Alexander, os governadores e Guardiões de Lys.
      A multidão lá em baixo começou a festejar imediatamente soltando gritos de alegria. Alguns assobiaram e muitos aplausos eram ouvidos, inclusive vindos das vinte pessoas sentadas atrás deles. Duas meninas apareceram a segurar duas almofadas de veludo azuis com os rebordos dourados. Nelas estavam tiaras douradas de forma triangular com uma simples pedra azul escura nela. Antes de Basmar pedir que ela se baixasse ligeiramente, ela notou que um dos lados da coroa era ligeiramente curvilíneo. Ele, então, colocou-lhe a tiara e depois seguiu-se a vez de Alaric. Basmar sorriu-lhes e pegou nas mãos de cada um.
- Estou ansioso por ver o que vocês vão trazer de bom para estes Reinos.
      Em seguida, saiu do caminho deles e indicou-lhes a balaustrada. Os dois caminharam até ao final da varanda e acenaram às pessoas que vestiam sorrisos e alegria. Nöelle não sabia como reagir aos sentimentos que dançavam na sua pele. A única coisa que ela conseguia fazer era sorrir para as pessoas lá em baixo que tanto nela acreditavam. O seu único desejo era corresponder às expectativas de todos eles a todo o custo. 

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