Underneath #49

- Vocês ainda não conversaram? - Júpiter perguntou, tentando aguentar a dor enquanto Catarina enrolava ligaduras limpas no seu braço. 
- Bem, não... O Troy ainda não pronunciou uma palavra, seria como falar com uma parede - respondeu.
     Júpiter emitiu um som entre dentes.
- Desculpa, mas isto tem de estar bem atado.
- Continua... - pediu ele. - Porque é que ainda não foste esclarecer as coisas com a Violet? Também ela perdeu a fala? 
- Não, mas não sei o que lhe dizer. Nem sei o que pensar - ela atou as ligaduras e suspirou. - Pronto. Se começar a vazar sangue ou outra coisa avisa-me que venho logo trocar. Não podes andar com isto sujo, ouviste-me? 
- Claramente. Agora explica-me o que se passa, outra vez - insistiu, sentindo-se aliviado pela dor estar a apaziguar e deitando a cabeça na almofada. 
- Nem parece que me ouves - comentou ela. - Já te disse o que aconteceu. O Troy gosta da Violet mas ainda está comigo. Ele enviou-me para cá para me proteger, como disse ele, mas começo a pensar que ele tinha outra razão sendo ela a Violet. Para não falar do facto de achar que eles são... 
- São o quê? 
- O Tal um do outro - respondeu ela, meio tensa. - E se for esse o caso, eu é que estou estou no meio deles os dois. 
- Aí está um bom drama - comentou ele, achando piada ao assunto. 
- Estás a rir-te, Júpiter? 
- Não, claro... Mas acho que tens razão. Eles devem ser o Tal um do outro. Especialmente se são reencarnações de almas passadas que foram Tais. 
- O quê? 
- Ninguém te disse? É um bocado trágico a história, realmente... 
- Do que estás a falar? 
- O Tema e a Vénus eram Tais um do outro. Ela morreu a proteger a galáxia e por consequência, o Tema foi ao seu encontro no mundo dos espíritos, morrendo também. A Lua, armada em fada madrinha, decidiu que as almas dos dois iriam sempre reencontrar-se. Uma história muito amorosa, de facto. 
     Catarina escondeu o rosto e Júpiter pensou que ela ia desatar a chorar até ver os ombros dela a mexerem-se e o silêncio ser preenchido por risinhos.
- Isto é tão estúpido - moveu as mãos pela cara até ao cabelo. - É claro que eles são almas gémeas... Tema e Vénus... Troy e Violet...
- Catarina... - chamou Júpiter, meio confuso.
- Como é que não poderiam? Têm o destino a trabalhar para eles ficarem juntos. Têm a Lua a trabalhar para eles ficarem juntos... É óbvio...
     O rosto sorridente dela começou a desmanchar-se numa expressão mais séria até não conseguir ver o que tinha à frente. Ela deixou a testa cair em cima do colchão da cama sentindo-se completamente assolada de emoções. Sentia-se especialmente chateada agora.
- Catarina, estás a chorar?
     O tom de voz dele era como o de um menino assustado, como se alguém triste fosse algum um bicho papão. Ela sorriu, levantando a cabeça e abanando a confusão para fora da sua mente.
- Tem calma, Juju - disse ela. Júpiter tirou os olhos dela e sorriu.
- Podes parar aí - avisou ele, passando a mão pela testa. - Não tenho energias para discutir.
- Bem, podes começar a arranjá-las - ripostou, levantando-se. - Não penses que eu me esqueci da tua tentativa de me matares. Para não falar que estavas disposto a matar o meu ainda namorado e o meu melhor amigo.
- Estás aqui a fazer o quê mesmo... já que nutres esse ódio todo por mim?
     Catarina puxou-lhe o lençol para cima, fitando Júpiter nos olhos.
- Mantêm os teus amigos perto e os inimigos ainda mais. Se voltas a repetir a brincadeira, eu própria mato-te, Juju.
      Dito isto, ela sorriu de fininho e afastou-se, saindo do quarto. As palavras dela ficaram a pairar no ar e Júpiter não tinha a certeza se ela estava a falar a sério ou não. De qualquer das formas, estava grato por terem-no impedido de matar uma rapariga daquelas. Catarina realmente ia directa ao assunto e era tudo menos inútil.


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     Nas últimas duas semanas, Troy virou mestre em fingir que dormia para evitar conversas. Claro que isso não impediu à mãe e ao Ryan de lhe dizerem aquilo que já sabia. 
- Tens de falar com a Catarina, Troy. Sabes que ela não vai dar a parte fraca e se não atinares vais perdê-la - dizia Ryan. - Sei que estás a passar por um mau bocado, está bem visível no teu rosto. Demora o tempo que achares necessário mas tem cuidado pois pode tornar-se tarde demais.
     Ele queria tanto abrir a boca e conseguir pronunciar alguma coisa. Queria tanto dizer à Catarina o que sentia e tentar explicar-lhe as coisas mas não conseguia. Algo o impedia de falar e Troy não percebia o que era, aparte de ser um grande nó na garganta. 
     Violet tinha posto os pés no quarto dele somente quando sabia que ele estava a dormir (ou a fingi-lo). No entanto, no mesmo dia em que Júpiter tinha recuperado os sentidos, ela ficara com ele até acordar. 
- Quem é o dorminhoco agora? São duas da tarde. 
     Troy sorriu, passando a mão pelos olhos. Tinha acordado de um pesadelo naquele dia. 
- Júpiter acordou finalmente. A Catarina está com ele. Não faz mal - acrescentou, ao ver a expressão dele. - Eles não se dão assim tão mal apesar dele tê-la tentado matar. Sentes-te bem? 
     Ele assentiu. Violet sorriu ao de leve e levantou-se do banco de madeira. Instantaneamente, ele agarrou no pulso dela e Violet ficou à espera que a voz dele se ouvisse. Troy até abriu a boca mas foi em vão. 
- Só vais falar quando tiveres algo de importante para dizer, Troy - disse-lhe, tirando o pulso da mão dele. - Espero que não demore muito mais. 
     Troy também assim o esperava e continuava a esperar. Estava farto de esperar. Passava os dias a tentar formar uma frase na companhia das vozes. Troy sabia que elas nunca iriam desaparecer assim como a sua culpa. As vozes e a culpa andavam de mão dada na sua cabeça e aquelas duas semanas permitiram-lhe ver isso mesmo. Jade disse que era um trauma e que com o tempo passaria. Troy não sabia como é que isso poderia ser possível. 
     
     Depois de tomar um duche, Troy subiu as escadas para o complexo mais alto. Dali conseguia ver o céu emoldurado pelas copas altas das árvores. Troy estivera ali umas quatro vezes e sempre que lá ia encontrava vestígios de que existia esquilos ou pequenas aves a viverem lá especialmente porque Jade fazia questão de deixar aquele lugar no estado em que estava. Talvez fosse de propósito. De qualquer maneira, o terraço pequeno daquele complexo era tudo o que ele precisava para relaxar. Troy ficou a ver o céu mudar de azul para negro, sem se aperceber do tempo.
- Troy, estás aqui.
     Era Melody.
- O que estás aqui a fazer? - perguntou a olhar para a sala repleta de folhas secas, outras verdes e ramos. - A tua mãe está preocupada contigo.
     Melody juntou-se a ele. Ela olhou para cima e viu um conjunto imenso de estrelas brilhantes, nada comparado com a sua vista em casa.
- Uau... Isto aqui é fantástico - disse-lhe. - Ainda não tens a voz?
     Troy abanou a cabeça.
- Então isso quer dizer que ainda não falaste com a Catarina?
     Ele assentiu.
- Ela está a ficar um pouco impaciente mas já deves ter noção disso.
     Impaciente devia ser uma forma gentil de explicar como a Catarina devia estar a sentir-se. Troy tinha noção que ela estava a contar os dias para dizer-lhe o sentia na sua cara. Ele bem merecia.
- Lembras-te do meu monstro, Troy?
     Troy assentiu, saindo dos seus pensamentos.
- Ele apareceu porque não completei o meu teste e eu pensava que ignorar o assunto faria-o desaparecer. Mas não o fez e só tornou o monstro mais forte porque eu no fundo não estava a ignorá-lo, estava a dar a minha completa atenção. E o facto de eu ver aquilo como um monstro só o tornou pior. No final, aquela era a minha consciência a pesar por não ter cumprido as minhas responsabilidades. O meu medo de falhar era enorme. O monstro só desapareceu quando eu o aceitei, quando eu finalmente percebi que falhei e que tinha de voltar a tentar.
     Troy não percebia onde ela queria chegar.
-  O que eu quero dizer, génio, é que a tua voz desaparecida é o teu monstro. Ela é a consequência de teres passado por tudo o que passaste e eu acho que está na hora de deixares isso para trás. O que aconteceu nunca vai desaparecer. Todos nós sabemos. Eu vou recordar para sempre o nosso tempo em Lymph mas tens de deixar as feridas sarar e impedir o Saeva de entrar nessa tua cabeça loira - Troy sorriu. - Ele morreu, Troy. Nenhum espírito da Escuridão vai voltar a assombrar-te. Quando deixares o passado onde ele está, vais ver que o teu monstro vai desaparecer. E depois vais ouvir da Catarina.
     Troy levantou as sobrancelhas e assentiu já a imaginar o cenário. Melody levantou-se, limpou o pó do vestido e passou a mão pelo ombro dele.
- Não te demores muito - disse antes de descer.
    

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     Do seu quarto, Troy conseguia ouvir a conversa do outro lado da ponte e o cheiro do jantar chegava até ele. Júpiter estava a dormir no quarto ao lado, a uma parede de distância. A luz da Lua começava a pairar sobre a cama dele dando um toque prateado a tudo à sua volta. Troy ligou um candeeiro e sentou-se no cadeirão cinzento. O seu corpo já não lhe doía mas sentia-se enferrujado. Sentia a falta do mar e da sua prancha. A mãe já lhe tinha prometido que dali a poucos dias iriam regressar a casa e Troy mal conseguia esperar. O ambiente da floresta por muito calmante que fosse não era o mar que tinha um efeito ainda maior nele. Tinha saudades de casa. 
- Troy - disse Catarina -, trouxe-te o jantar. 
     Ele levantou-se logo ao vê-la com dificuldades em agarrar o tabuleiro. 
- Obrigada. 
     Troy colocou o tabuleiro na mesa ao lado da sua cama e ficou com água na boca ao ver frango com salada no prato e três queques de cenoura como sobremesa. 
- Eu preciso de falar contigo.
     Troy virou-se e fitou-a. 
- Eu não consigo continuar com isto preso na garganta - afirmou. - Passo as noites a pensar no que te dizer e não posso continuar assim. Eu sei que não tinhas intenção nenhuma de magoar-me mas tu magoaste-me. Sabes bem como eu lido com estas coisas, conheces-me melhor que ninguém... Se me sinto mal reajo num instante mas tu na situação em que estavas... não podia ser assim tão egoísta ao ponto de explodir à frente de todos... 
- Eu sei, eu percebo e quero...
- Deixa-me acabar, Troy - insistiu. - Tu e a Violet, eu... Espera, o quê? 
     Troy sorriu com algum receio e à espera que ela desatasse finalmente à chapada. Mas, em vez disso, Catarina sorriu e abraçou-o com imensa força. Troy colocou os seus braços à volta dela sem querer largá-la. Aquele sentimento tão familiar era reconfortante e tudo o que ele precisava naquele momento. 
- É tão bom ouvir a tua voz - murmurou, com a cabeça deitada no ombro dele. Ela então afastou-se. - Mas não vai mudar o que tenho para dizer-te.
     Ele tentou agarrá-la mas não conseguiu. 
- Eu sei o que vais dizer e antes de mais, eu quero pedir-te desculpa. Eu nunca pensei que eu pudesse... que a Violet se fosse tornar... - as palavras baralhavam-se na sua boca. - Catarina eu não deixei de gostar de ti - afirmou a sua única certeza.
- Eu acredito em ti. Mas tu já não gostas só de mim agora e eu não quero estar nesta posição - ela parecia cansada e Troy não tinhas dúvidas que as últimas duas semanas tinham-na esgotado. 
- O que queres dizer, Catarina? Estás dizer que acabámos? 
     O cenário tinha cruzado a mente de Troy mas ainda assim não conseguia acreditar. Ele desde que se lembra que a tinha ao seu lado e os últimos três anos em que ele namoraram tinham mudado a vida dele por completo. Se não fosse por ela e o que os dois partilhavam um com o outro, Troy não sabia como estaria a sua vida principalmente porque Catarina foi o seu maior apoio quando Ryan foi-se embora sem avisar. Portanto, só de pensar que nunca mais ia tê-la ali para ele como a teve durante estes anos todos era algo que lhe metia medo e deixavam-no desamparado. 
- Talvez - Catarina fitou o chão e depois olhou firmemente para o rosto dele. - Estou, Troy - afirmou decidida.
- Catarina... - disse ele, quase num sussurro e aproximou-se. 
- Estou a fazer o melhor para os dois. Os três, aliás. 
      Troy encarou os olhos escuros dela durante bastante tempo e, em seguida, dirigiu-se para a cama e sentou-se. Estava completamente banhado em luz prateada. A vontade de sentar-se ao lado dele e abraçá-lo foi automática para Catarina e foi um grande esforço ter de permanecer em pé sem mostrar a parte fraca. Ela sabia que estava a fazer o que achava certo apesar de custar muito.
- Nós vamos continuar amigos, Troy. Eu não vou conseguir ficar sem ti - disse ela, a tentar captar o olhar dele. 
- Não vai ser o mesmo - contrapôs, encarando-a. 
     Os dois ficaram em silêncio lutando contra a força que os puxava um para o outro, até Troy ceder, estendendo-lhe a mão. Os seus olhos azuis esverdeados pediam-lhe que ela agarrasse a sua mão. Catarina pegou-a e foi puxada para ele. As testas de ambos tocaram-se em movimentos carinhosos e familiares. Os dedos entrelaçaram-se uns nos outros. Toques gentis e quentes foram acontecendo, lembrando-lhes da relação que cresceu entre eles e quase apagando o seu decidido fim. Entre sorrisos, os dois beijaram-se pelo que acharam ser a última vez. Ao separarem-se, Catarina fez questão de realçar que eles já não eram um casal mas Troy não tinha a certeza disso pelo beijo que recebeu. 
- Estou a falar a sério, Troy - reforçou. - A sério. 
- Acabámos. Eu sei, eu ouvi-te. 
      Catarina afastou-se. 
- Sim. Eu não quero ficar...
- Cat, eu sei - repetiu ele, meio a sorrir. - Eu respeito a tua decisão. 
- Ainda bem. 
     Alguns momentos mais tarde, Troy começou a jantar e os dois ficaram a conversar. Catarina estava interessada em como Troy recuperou a voz e o que realmente aconteceu enquanto ele esteve fora. Ela também teve uma oportunidade de contar-lhe sobre os acontecimentos que envolviam Júpiter e os dois mostraram-se muito surpreendidos por Ryan ter poderes e ser um Planeta. Os restantes Planetas também foram tópico de conversa. Quando começou a fazer-se tarde, a mãe e Ryan apareceram no seu quarto e ficaram animadíssimos por ouvirem-no falar de novo. Charlotte perguntou-lhe como é que a voz tinha voltado e ele disse que Melody tinha-o ajudado nesse aspecto, sem referir pormenores. Ryan atirou um "só podia" após Troy lhes contar. Alguns minutos depois, Charlotte exigiu que o três fossem dormir pois já passava das dez. 
- Estamos de férias, mãe - disse-lhe Troy. 
- A Catarina está de férias. Vocês - apontou para Ryan e Troy - vão ter exame no final desta semana. É bom que comeces a pegar nos livros, Troy Evans. 
- Sim, sim... 
      Troy sorria para Ryan e este piscou-lhe o olho. Catarina estava a tentar não cair na brincadeira dos dois. 
- Vamos, Cat? 
- Sim. 
     Os dois despediram-se de Charlotte, Ryan deu um abraço ao Troy e quando foi a vez de Catarina houve um certo desconforto. Troy não estava a tentar evitar um beijo e ela acabou por acenar e dizer-lhe - Até amanhã! Depois de chegarem à casa dela, Ryan perguntou-lhe se ela tinha prosseguido com a sua decisão ao que ela respondeu que sim. 
- Acho que o Evans vai demorar a processar isso - atirou ele. 
- Vais ver que não. Agora ele tem a liberdade para fazer o que quiser com a Violet. 
- Ela pode gostar dele mas a última coisa que vai fazer é atirar-se aos braços dele, Cat - advertiu Ryan, um pouco irritado pelo comentário dela. 
- Pois, ainda bem... Ainda não sei como vocês as distinguem. 
- Tu não consegues? - perguntou, confuso. - Elas são tão diferentes... 
- As duas são uma cópia uma da outra, literalmente iguais. Mas acho que já consegui captar uma feição que a outra não tem - respondeu. 
      Catarina viu a cozinha a ser iluminada e decidiu entrar. 
- Boa noite - Ryan deu-lhe um beijo no rosto e desapareceu num piscar de olhos. 
     Ela suspirou. - Quando é que eu vou ter os meus poderes, hum? 


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     Assim que acordou, no dia seguinte, Troy pediu a Jade que ligasse aos Brown - Luna e Sol. Troy queria contar-lhes o que aconteceu aos Planetas de Lymph. 
- Antes dos Planetas desaparecerem completamente, eu acho que suguei-lhes a essência. 
- Como assim? - perguntou Luna. Virou-se para o marido - Isso é possível? 
     Sol encolheu os ombros. Parecia que já estava à espera de tudo agora. 
- Se eu o fiz é porque é. Deixem-me mostrar-vos. 
     Troy colocou as mãos de palmas para cima, fechou os olhos e chamou as chamas para as suas mãos. Duas pedras redondas azul e vermelha do tamanho de uma bola de golfe apareceram na sua palma esquerda e uma verde na direita. 
- Quando as suguei eram apenas chamas... Mas parece que decidiram tornar-se em algo sólido. 
- O que queres fazer com elas? - questionou Jade pegando na pedra vermelha e examinando-a. 
- Bem, quero fazê-las ganhar vida - respondeu. - E eu acho que só uma Estrela consegue fazer isso e só há uma Estrela entre nós. Tu, Sol. 


Nota: O capítulo final vai ser o #50 acompanhado de um epílogo. 

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